um menino que gostava de meninos – 2

Abrindo parêntese.

Nunca saberei se aquela experiência com meu primo despertou minha curiosidade por homens, ou essa curiosidade sempre exisitu e aqueles encontros foram apenas a primeira oportunidade de vivenciar o que já trazia latente, desde sempre. A curiosidade é normal na criança. A maneira como é satisfeita, porém, mais ou menos traumática, nessa ou naquela direção, talvez possa ser determinante em nossos comportamentos futuros. Sabe-se lá… Se tivesse tido a oportunidade de lidar com isso naturalmente, tudo poderia ter sido mais fácil, diferente. Como saber?

Depois que escrevi o primeiro texto desta série, me veio à memória um outro affair, ainda na infância. Com outro primo, irmão do primeiro. O lance agora foi entre dois garotos da mesma idade, o que talvez não tenha me fascinado tanto. O desenvolvimento dele era quase igual ao meu, embora diferenças já se anunciassem. Foram três ou quatro encontros.

Trancávamo-nos em meu quarto, ficávamos nus, excitados. Mas não pense que foi desta vez que rolou sexo. Não. Nada. Só mesmo ficar juntos, umas pegadinhas, e nada mais, brincadeiras tolas, um quase teatro, muita admiração, satisfação da curiosidade, minha, sobretudo, já que ele, por ser freqüentador do clube, conhecia um vestiário, homens nus não eram novidade para ele; conhecia as diferenças. Durou pouco. Não me lembro como começaram, nem por que terminaram. Não lamentei o fim.

Essas brincadeiras em si, entretanto, acredito não terem sido determinantes de minha futura orientação sexual, assunto então ainda desconhecido, insondável, e que, aparentemente, nem sempre tem as mesmas causas, nem estas as mesmas consequências para todos. Depende da pessoa, de como cada um vive e encara as coisas. Tanto que nenhum desses meus dois primos é gay. Ambos são casados e, pelo que sempre soube, inquestionavelmente heterossexuais. Nunca souberam de minha orientação sexual. Especialmente porque tive a felicidade de, não muito tempo depois dessas brincadeiras, mudar para bem longe deles e nunca mais encontrá-los.

Pintura de Henry Scott Tuke

Essa idéia de que um garoto possa se tornar um homem completamente diferente do que se poderia imaginar, consideradas certas brincadeiras a que fosse habituado, até hoje me intriga. Vem corroborar a idéia de que quem é, é; e quem não é, não adianta insistir, nunca será. Tive, nos tempos de pré-adolescência um colega que, diziam as boas e as más línguas, agradava metade dos garotos da cidade em práticas que consideravam indignas de um futuro homem. Permitia, com freqüência, aos olhos de todos, que se esfregassem nele, em meio à algazarra de saída da escola ou ao final dos nossos treinos de judô. Muitos diziam já ter comido o cara. E não é que ele cresceu esqueceu tudo isso? Acredite se quiser! Não sei como mudou sua história, ou como aquilo podia ser uma prática fora de sua história, como depois dessa imagem conseguiu se impor e ser admitido no mundo dos ditos homens. Como, numa cidade pequena, conseguiu passar uma borracha em tudo? Eu não teria conseguido. Ingressou e foi admitido no mundo daqueles mesmos homens que um dia desdenharam de sua masculinidade. Na visão deles, bem entendido. Hoje, é casado, pai, senhor respeitável na minha antiga aldeia. E, se continuou com o vício infantil, o faz em segredo absoluto. Acho difícil. Talvez não fosse gay. Um caso que mereceria um estudo sério… Como alguém muda assim? Mudou, nunca foi, ou continua sendo?

Mas aquelas brincadeiras com os dois primos não me transformaram. Reprimiram, machucaram, me deram uma sensação permanente de inferioridade e inadequação perante o mundo. Foi algo muito além. Continuei virgem, em todos os sentidos até os dezenove anos, quando, finalmente volto a ficar pelado perto de algúem. Agora, de uma prostituta. Antes disso, nada, nunca.

Embora não fosse a bichinha da escola, nada afeminado, alguns sinais de que era diferente dos demais eu devia emitir, pois nunca fiz parte nem me senti aceito ou respeitado pelos colegas como menino e futuro homem. Os lobos sempre sentem o cheiro da ovelha frágil. Infelizmente, precisaria ver o filme de minha infância de novo para tentar entender, coisa que, hoje, acho que não vale mais a pena. Seria muita preocupação com nada. Já foi, não volta. Tinha que ser? Nunca saberei. Creio que o que está escrito, pode ou não ser lido, mas nunca alterado.

A identidade masculina, dizem, pouco tem a ver com a orientação sexual. E concordo com isso, mas de alguma forma a integração ao mundo dos homens contribui para que nos aceitemos de um jeito ou de outro. E pode acontecer com as situações mais prosaicas, aparentemente insignificantes. Houve um episódio, este sim, que foi determinante em meu afastamento do mundo masculino. Na primeira série, aos sete anos, nossa professora nos levou à quadra esportiva para uma recreação. Os meninos se dividiram em dois times e jogaram uma pelada. Eu queria brincar, gostava de estar no meio da garotada, e entrei no jogo, embora nunca tivesse encostado numa bola. Fiquei em um dos times, mas não cheguei a sacar que aquela brincadeira se jogava em dois grupos, um contra o outro. Em minhas fracassadas tentativas de tratar a bola, passei, ou procurei passar aos meninos que me eram mais simpáticos, sem considerar que pudessem ser adversários. Disso me lembro bem. Não preciso nem dizer que na volta à sala de aula fui quase linchado, execrado, os mais exaltados declarando que eu nunca mais jogaria com eles. Fora o palavreado utilizado… Fiquei tão apavorado que decidi, inconscientemente, nunca mais chegar perto de uma bola de futebol. E isso, sem dúvida, não foi nada legal. Num país como o nosso, ficar longe da bola é quase o mesmo que declarar seu afastamento do mundo masculino. Tudo bem, se você tem outras atividades pode suprir isso, mas na quase aldeia de minha infância, sobrava quase nada a um garoto quase pobre que não soubesse o que era futebol.
E assim cresci.

Impossível dizer que me afastei dos outros garotos, rapazes e depois homens porque não me sentia parte do mundo deles, ou se nunca me senti parte do mundo masculino por ter me afastado dos homens, por medo e sentimento de inadequação, desde muito cedo. O fato é que me afastei. Fez falta? Fez, faz, fará, sempre.

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10 respostas para um menino que gostava de meninos – 2

  1. bluMan ;) disse:

    livre me seu blog. sem interrupções. tem tempo pra achar as palavras certas.
    eu tenho muito o que dizer. mas agora não consigo.

  2. Lito disse:

    ow cara, juro que eu fiquei tentado a saber o lugar onde vc nasceu…Por que vc sempre se refere a ele como sendo uma “aldeia”. Isso é ironia, um pouco de hiperbole ou nada além de descrição de fatos?

    Obrigado por ter tentado mudar a cor DO BLOG, mas não precisa mais…Eu mesmo dei um jeitinho aqui.Mas mesmo assim agradeço a sua disponibilidade e simpatia.

    Mais uma vez vc me surpreendeu ao deixar bem claro que, mesmo sendo gay, não é nem um pouco promiscuo.Coisa que hoje em dia é raro nesse meio.

    Abraços e parabens pela ótima escrita,suas histórias são ótimas.

    • Alex Martini disse:

      Lito,

      considerando os dados do IBGE, uma hipérbole, rigorosamente. Embora todos os fatos sejam verdadeiros, a referência à cidade como aldeia é exagerada mesmo, uma pitada de ironia para deixar o texto menos maçante. Consciente e propositadamente.
      Tinha, então, 50 mil habitantes, mas na minha memória, era uma aldeia. O sentimento registrado foi o de viver numa aldeia, a minha deliciosa aldeia. Que só passou a ser deliciosa agora, na memória, superado o passado.

      Pra ter uma idéia, aquele muro onde eu me debruçava para ver o Marquito (minha primeira paixão platônica), ficava numa rua sem pavimentação, de terra roxa, poeirenta nos dias secos e barro de afundar os pés nos dias de intermináveis aguaceiros. Os tempos lá eram outros, e por minha rua, quando não via Marquito chegando, via boiadas passando. Muitas vezes intermináveis (olha o exagero de novo, mas para um menino de 3 anos, era a sensação… entende?) . Ficava na beira da cidade, uma das últimas casas da zona urbana, quase num paraíso bucólico, rural. Ah… se eu pudesse voltar… (olha a memória nos traindo de novo; não era paraíso, nem bucólico, mas é essa a memória que me vem dos mesmos fatos).

      Sei que assumir a hipérbole, no caso do tamanho da cidade, poderá dar a oportunidade a muitos (poucos, porque poucos são os leitores) que acompanham de imaginar que exagero em outras coisas. Não. Acredite. Os fatos são verdadeiros. Tudo.

      A cidade, para você não ficar tão curioso, fica num estado do Sul. Mais não posso dizer, aqui, se não perde a graça. Posso dar o azar (suprema improbabilidade) de que alguém se veja na história…

      Sobre a promiscuidade, é verdade. Não fui promíscuo, fui casto. Fisicamente. Virgem de tudo até os dezenove anos. Mas uma castidade imposta, não verdadeira, não convicta. Não era uma castidade de alma, mas uma limitação de atitudes imposta por meus complexos, meus medos, minha insegurança. Não por minhas vontades, que eram bem outras. Como de qualquer homem comum, creio. Gostando de pintos ou de xoxotas. De peitorais ou de seios.

      Ou seja, embora eu não fizesse sexo, não posso dizer que tenha sido um adolescente puro. Não em pensamentos e vontades. Tanto que depois, na idade adulta, as coisas mudaram. Arrebentaram. Mas mesmo transando, buscando, continuei cada vez mais casto… Contradições da vida, que vou contando aos poucos…

      É triste ver que as pessoas nos consideram promíscuos simplesmente por dar e sentir prazer carnal de outra forma. Carne que virará pó, deixando os espíritos, iguais, que são iguais… Mas é exigir demais dos outros… Considerar-nos promíscuos, como um todo, é uma forma de nos rebaixar.

  3. Junior disse:

    Oi Alex. Cada vez mais me espelho nos fragmentos da sua história.
    Será que, com as peculiaridades de cada um, em maior ou menor proporção, nós, gays, temos todos a sensação de estranheza quando somos crianças? Isso me afligia na infância. Não sabia o quê, mas tinha consciência que havia uma diferença entre mim e a maioria dos garotos. E era algo velado.
    O seu texto continua ótimo.
    Junior.

  4. Lito disse:

    Sabe alex, de uma forma geral o universo gay é sim considerado promiscuo.Eu mesmo já fui taxado de promiscuo até mesmo por um amigo gay
    Só que no fim das contas eu nem sou promiscuo e se as pessoas parassem pra me conhecer mesmo veriam que elas cometem muito mais atos “libidinosos” do que eu.
    Não sou santo, longe disso.Mas também passo longe de ser um puto cachorrão.

    Ultimamente eu tenho lido algumas coisas, conversado com algumas pessoas e trocado muito meus pensamentos.Tenho percebido que promiscuidade é uma palavra que tem sentido diferente pra diferentes pessoas.Seu sentido é muito variável…

    E creio eu que seu pensamento sobre a promiscuidade tb seja um pouco diferente do sentido convencional ( que por ser convencional não precisa ser necessariamente tido como A verdade absoluta)

    Adoro ver diferentes opiniões e pontos de vista.Estamos aqui é pra aprender e evoluir.
    Hoje eu aprendi um pouco mais com vc.

    • Alex Martini disse:

      Lito,
      você tem razão. Conceitos sobre atividades humanas são sempre relativos, ou guardam sempre uma margem para avaliação individual.
      Um homem heterossexual que come todas, geralmente é macho, pegador; admirado e invejado por boa parte de seus pares.
      Uma mulher heterossexual que dê feito chuchu na serra, hoje em dia, pode, quando muito, ser tachada de galinhona, mas ninguém acha que faz nada de errado.
      Já um gay que faz sexo como qualquer outra pessoa, na mesma frequência, é promíscuo.
      Reconheço que o fato de sermos homens, e transarmos com outros homens, facilita muito as coisas. Mas promiscuidade, pra mim, é o que se faz, por exemplo, com o dinheiro público, com os menores abandonados, com os doentes largados em hospitais.
      Enfim… se as pessoas se preocupassem menos em rotular as pessoas com base no que elas fazem na cama, com quem fazem, e mais com as coisas que têm consequência direta para a coletividade, o mundo seria melhor.
      Porém, sempre, é apenas uma opinião…
      Valeu! Abração!

  5. Margot disse:

    Alex, voltei. Continuando a ler….sinceramente, me encantei com a sua “inocencia” em garoto. Porque era isso o que vc era..inocente. E quão ruim é Alex, ver outros garotos da mesma idade, te hostilizarem, por falta de esclarecimento. Falta que existe até hoje, infelizmente, e hoje, com resultados tão funestos.
    Em criança sempre fui muito magrinha e adoentada…. e naquela época me chamavam Olivia Palito….. Sabe Alex, que até hoje isso não sumiu de mim…. acho que nunca serei gorda o suficiente para fugir das lembranças, mesmo que eu tenha hoje um corpo dentro da normalidade….. Algumas coisas não saem da gente. Frases, expressões, caretas….. por mais que eu ouça que sou bonita, agradável de se ver…. é Olivia palito que me vem a mente quando estou em frente ao espelho.
    Beijoos… vamos ao proximo capitulo…rs

  6. Querida Margot,
    você captou a essência da coisa: eu era, verdadeiramente, um inocente. Poucos entendem a coisa dessa forma, mas é delicioso ver que alguém assim, lendo a história de um desconhecido, uma história, mostre um conhecimento são sensível e solidário. Você acertou na mosca.
    Ah! Essa alma feminina, materna…
    Escreverei mais sobre isso…
    Beijos!

  7. Gera Souza disse:

    Interessante…muitas coisas pra falar… apesar de pensar como você, “a ideia de que quem é, é; e quem não é, não adianta insistir, nunca será.” fiquei refletindo sobre sua história. Pelo que tenho visto aqui no interior, pela quantidade de homens casados que procuram outros homens para satisfazerem suas fantasias, acredito que quando se vive uma vida inteira se omitindo, se escondendo e assumindo uma vida “dita normal” perante os olhos da família e da sociedade, somente para satisfazê-los; muito maior será a infelicidade que isso pode causar! E o resultado é inevitável, mais separações e famílias divididas…Talvez eu tenha saído um pouco do tema, mas achei pertinente, pois sua história é muito envolvente e abrangente! Estou curtindo bastante…abração

    • Cada um é cada um, né! Eu sempre procurei ser sincero comigo mesmo, ainda que não soubesse exatamente o que eu era. Então não envolvi ninguém nessa minha confusão. Mas não vai aqui nenhuma crítica a quem quer que seja.
      Uma coisa que tenho aprendido, com o tempo, é a entender que cada um tem seus próprios motivos para ser e agir como é e age. E o mínimo que eu posso fazer, é respeitar e procurar entender o outro.
      Porque entendendo o outro, ou tentando, entendo um pouco mais sobre o ser humano e me torno, também eu, um pouco mais humano.

      Grande abraço!

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