dálias indiferentes

João vivia ultimamente liberto dos pesadelos que o assaltavam até há poucas semanas. Até o ingênuo João sabia que parte de seus sonhos macabros, talvez mesmo a parte mais substancial deles, não era de origem endógena, orgânica ou espiritual, mas decorrente de drogas passageiras. Depois de algumas semanas de paz, o tolo João teve um sonho que, inversamente à lógica comum na ocorrência de sonhos escuros, em que passamos de tormentos no sono a alívio ao acordar, causou efeito inverso.

João sonhou que entrava pelo quintal da casa de sua avó Leocádia, pedaço de mundo bucólico na sua infância, hoje transformado num estacionamento calçado de pedras, indiferentes ao passado e à história de quem primeiro pisou aquele solo. Esse quintal era o pedaço da Terra em que sempre buscou refúgio imaginário, ainda nos dias de hoje. Gostava de fantasiar que aquele lugar ainda existia e o acolhia, secreta e discretamente. Passou pela casinha de madeira minúscula, construída ao estilo dos imigrantes poloneses, passou pelo pé de jasmim, pelas dálias multicoloridas meio largadas em meio a pés de couve e algum mato intruso, viu as janelas da cozinha fechada, imaginou que a avó e a tia estivessem na labuta no puxadinho dos fundos.

Foi se aproximando, mas o silêncio continuava, tão gritante que lhe permitiu ouvir as patas dos coelhos raspando no viveiro que habitavam, improvisado numa embalagem de pinho que trouxera da fábrica em Curitiba o piano que a essa hora era tocado por alguma aluna na casa do vizinho. Pelo que ouvia, já sentia que era mais uma que nunca chegaria, como ele, a tocar uma sonatina que fosse. Chegou, olhou, coelhos indiferentes, algumas baratas andando pelas paredes de madeira escura, ouvia uma torneira pingando no tanque de cimento, mas não havia sinal de ninguém. Pra onde teriam ido? Ficou triste. Queria receber uma bronca que fosse da vó, mas não podia mais se agüentar sozinho ali naquele mundo. Mas a avó não estava, a tia não estava, tudo era indiferente à sua presença.

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Sentiu um aperto no peito, um medo de algo que nunca havia enfrentado, e rezou. Não sabia rezar e não acreditava em nada, mas rezou. Pediu, desesperadamente que virasse subitamente parte do solo que alegrava e nutria aquelas dálias que adoravam sua avó, que mesmo abandonadas insistiam em florir. Cochilou ali, sem saber o que fazer, pra onde ir. Quando acordou, viu que do imenso paredão que fechava o fundo do quintal se abriu uma porta, e do outro lado, ninguém, nada, apenas uma luz intensa, branca, amarelada como a cor do sol, mas embaçada, preenchida por uma nuvem espessa, uma neblina cerrada ao sol. Achou estranho, mas foi tomado por uma imensa felicidade. Alguém havia lembrado dele e o tiraria dali, daquele mundo. Ficou feliz porque, estava certo, finalmente chegara a hora de morrer e sair daquela merda toda em que chafurdava há tantos anos. Só não dizia que era desde o dia em que nasceu porque, de fato, não se lembrava como tinha sido sua vida nos primeiros dois ou três anos. Se imaginou sempre já tendo nascido com três ou quatro anos.

Sentiu cheiro de sangue limpo, impregnando as tábuas de pinho enegrecidas pelo tempo. Imaginou que sua avó a a tia haviam escapado por aquela passagem secreta e poderiam estar esperando bem ali, mas a voz que ouviu não era delas, nem de ninguém conhecido. Uma voz que ordenava, com carinho: “entra, João, que a casa agora também é tua” e você aqui é muito bem-vindo.

Antes que pudesse se levantar, acordou na cama dura, o sol do sábado já alto se infiltrando peloas brechas da cortina. Desesperado, pensou: não é possível que eu tenha voltado pra essa merda! Agora que me mostraram que havia uma saída! Por que não me deixaram entrar?

Entre sonho e realidade, inseguro do que era verdade ou imaginação, navegou fundo novamente em busca daquela porta que havia sido aberta no paredão de seu recanto secreto. Tentou dormir para, quem sabe, se convencer que aquilo realmente existia. Dormiu, mas o que viu e sentiu não foi mais o ambiente luminoso, mas a velha e tola vida de volta.
Acordou, viveu o sábado, o domingo, o peito cada vez mais apertado, cada vez mais triste, a cada minuto mais desanimado e irritado, sentindo uma dor profunda em todo o corpo, como se uma agulha tivesse espetado sua alma subitamente transformada em matéria viva. Suas pálpebras pesavam cada vez mais, os olhos doíam segurando lágrimas que já haviam secado há muitos anos, as mãos tremiam. A única coisa que sentia era uma imensa vontade de torturar e matar aqueles que, no momento, consubstanciavam e representavam toda a opressão que sentia e cuja origem desconhecia, já que não encontrava respaldo em nenhum fato concreto e relevante.Tinha vontade de acabar com tudo, matar, matar. Mas não tinha nenhuma arma. E se sabia covarde para isso.

João era teimoso, sabia que precisava fazer algo, que quando sentia vontade de matar precisava agir antes que fizesse algo para, de fato, satisfazer sua vontade. Mas João era teimoso e não tinha armas. E era covarde, cagão, bundão. Continuou com a agulha enfiada na alma cada vez mais pobre e desanimada.
E passou a sentir prazer com a dor, e a carregá-la como gozo permanente. Finalmente, por algum caminho torto de sua mente pobre, tinha encontrado a felicidade. O que achava fosse isso. Não era.

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7 respostas para dálias indiferentes

  1. Magnificamente belo. Forte, denso, dilacerante mesmo. Fui lendo, mergulhando, sorvendo cada sílaba, cada vírgula, cada ponto. Transportei-me para alguns dias a trás, em um lugar bem compatível … Milho Verde. Lá as dálias floriam em profusão de cores no quintal da casa que me hospedava. Ao longe, vinha o som de Matinas da Virgem [Lobo de Mesquita] e eu ali absorto viajei no tempo e me vi em minha infância no quintal de minha casa onde minha mãe cultivava dálias que floriam em profusão de cores. Hoje em minha vida só mesmo a saudade de mamys e das dálias que floriam em profusão de cores. Minha viagem por esta vida não me angustia tanto, nem me causa desejos mortais, mas sempre sempre está repleta de nostalgia e saudades de um tempo único.

    ** Westminster Cathedral Choir – Psalms … Magnífico …

    ps: e ainda ousava nos deixar por aqui sem suas maravilhas não é seu Moço Lindo!

    Beijão

  2. Foxx disse:

    Uau!
    Absurdamente… Uau!
    Me vi no João. Muito.

  3. Adriano disse:

    Amigo, que perfeição de texto! De uma sensibilidade! E eu fui lendo, ouvindo a música (que coral maravilhoso! já anotei aqui…), é uma viagem! Tanta coisa da minha infância voltou. Obrigadão por esses momentos lindos que senti!

    Abração

    PS: Da próxima vez que você disser que não sabe escrever… acho que vou xingar você! (rsrsrs)

  4. fred disse:

    Texto e trilha… tudo muito bem alinhavado pelas mãos de um hábil costureiro… Valeu o dia! E ainda mais com teu retorno ao nosso tpm! Bjs!

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