Sob o Sol do Arouche

Sob o Sol no Arouche

Ela estava largada ao sol da manhã, enrolada num cobertor xadrez, à beira da calçada do Arouche. Eu, bem acomodado, a observava da sacada do oitavo andar. Nem alegre, nem triste, tentava imaginar o desconhecido ponto da linha em que aquela moça desistiu… Fiquei indagando o que a terá feito abrir  mão de tudo para viver ali, jogada na rua. Ou quem — o o quê — a teria levado àquela condição… Como teria sido sua vida antes? 

Mais tarde, voltando ao hotel pela Vieira de Carvalho, vejo uma senhora sentada na esquina. Ela sorri pra mim e eu reconheço o cobertor. Fui adiante, mas algo me parou alguns passos depois. Voltei e retrubuí o sorriso, olhos nos olhos. Dei-lhe algum trocado…

— Te vi deitada ao sol hoje cedo. Não sente calor, não?

— Um pouco…

— Deita na sombra na próxima vez…

Ela lê “peace” em minha camiseta e diz:

— Isso é paz.

Eu, sorrindo:

— Sabida …

Agradece e sorri de novo pra mim. Um sorriso que rarissimamente encontro entre os meus: sincero, despretencioso, tímido, mas decidido e forte. … Sua boca agora tinha, inteiro, apenas um incisivo, também já meio careado, entre outros cacos já enegrecidos. Mas ainda tinha vontade de sorrir. De verdade. Não tinha dentes, mas sorria. De alguma forma nos reconhecemos e nos encontramos. Eu? Falar o quê?

Na manhã seguinte, lá estava ela novamente sob o sol, enrolada, em paz. Os ônibus iam e vinham, transeuntes passavam, apressados uns, indiferentes todos. Ela não existia para ninguém … Mas ainda sorriria para cada um que a visse. Mas ninguém a via, nenhuma alma percebia que ainda havia um corpo vivo naquele cobertor.

Não sei quem era mais triste. Se eu ou os transeuntes. Ela, a mais frágil e vulnerável, não me pareceu triste. Apenas tocava a viver a vida que lhe cabia, em paz. Decepcionada, talvez, mas ainda com uma força intangível, que eu não sou capaz de imaginar, muito menos de assumir e usar. 

Viver na rua não é pra qualquer um. Pra mim não seria fácil. Mas, acredite: todos eles têm um motivo para lá estar. E as razões não são a preguiça que você possa atribuir a eles, não é a indolência que muitos imaginam, nem o crack que quase todos acham que os moradores da rua fumam.

Não é assim. São humanos, apenas e integralmente. Em algum ponto, deram um basta. Não se mataram, mas se jogaram — ou foram jogados — e não mais se levantaram. Na rua.

E nós?

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O céu que eu não via

O céu que eu não via

O céu sempre esteve. Eu sempre estive.
Mas só há pouco a gente se aconchegou.
A cada encontro me pergunto: como não te via antes?
Cegueira de quem tem olhos perfeitos, me diz ele. Eu sempre te vi!

A cada encontro, um orgasmo juntos.
Ele público, eterno, grandioso.
Eu tímido, contido, quase envergonhado, escondendo o tesão da alma!
Intenso.
A cada encontro, uma nova arte.
Exuberante, belo, perfeito, me leva
Calmamente ao gozo. Sempre.

Eu? Queria que nossos instantes fossem eternos.

Ele sempre esteve ali, mas eu nunca acreditei que me quisesse!
De uns tempos pra cá ficou assanhado pro meu lado.
Se arreganha, sorri, se exibe, me convida:
— Vem cá, seu bobo! Eu sou teu. Me pega, me abraça, me ama, gozemos juntos!
Eu sempre te amei!
Acredita? Agora?

Ainda não sei!, respondo em silêncio!
Ah!, mas como é bom estar contigo!
Disso já não duvido mais.
Você me fez mais ar!
Você me fez mais homem!
Capaz de aprender a amar.
Humano, enfim!

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dálias indiferentes

João vivia ultimamente liberto dos pesadelos que o assaltavam até há poucas semanas. Até o ingênuo João sabia que parte de seus sonhos macabros, talvez mesmo a parte mais substancial deles, não era de origem endógena, orgânica ou espiritual, mas decorrente de drogas passageiras. Depois de algumas semanas de paz, o tolo João teve um sonho que, inversamente à lógica comum na ocorrência de sonhos escuros, em que passamos de tormentos no sono a alívio ao acordar, causou efeito inverso.

João sonhou que entrava pelo quintal da casa de sua avó Leocádia, pedaço de mundo bucólico na sua infância, hoje transformado num estacionamento calçado de pedras, indiferentes ao passado e à história de quem primeiro pisou aquele solo. Esse quintal era o pedaço da Terra em que sempre buscou refúgio imaginário, ainda nos dias de hoje. Gostava de fantasiar que aquele lugar ainda existia e o acolhia, secreta e discretamente. Passou pela casinha de madeira minúscula, construída ao estilo dos imigrantes poloneses, passou pelo pé de jasmim, pelas dálias multicoloridas meio largadas em meio a pés de couve e algum mato intruso, viu as janelas da cozinha fechada, imaginou que a avó e a tia estivessem na labuta no puxadinho dos fundos.

Foi se aproximando, mas o silêncio continuava, tão gritante que lhe permitiu ouvir as patas dos coelhos raspando no viveiro que habitavam, improvisado numa embalagem de pinho que trouxera da fábrica em Curitiba o piano que a essa hora era tocado por alguma aluna na casa do vizinho. Pelo que ouvia, já sentia que era mais uma que nunca chegaria, como ele, a tocar uma sonatina que fosse. Chegou, olhou, coelhos indiferentes, algumas baratas andando pelas paredes de madeira escura, ouvia uma torneira pingando no tanque de cimento, mas não havia sinal de ninguém. Pra onde teriam ido? Ficou triste. Queria receber uma bronca que fosse da vó, mas não podia mais se agüentar sozinho ali naquele mundo. Mas a avó não estava, a tia não estava, tudo era indiferente à sua presença.

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Sentiu um aperto no peito, um medo de algo que nunca havia enfrentado, e rezou. Não sabia rezar e não acreditava em nada, mas rezou. Pediu, desesperadamente que virasse subitamente parte do solo que alegrava e nutria aquelas dálias que adoravam sua avó, que mesmo abandonadas insistiam em florir. Cochilou ali, sem saber o que fazer, pra onde ir. Quando acordou, viu que do imenso paredão que fechava o fundo do quintal se abriu uma porta, e do outro lado, ninguém, nada, apenas uma luz intensa, branca, amarelada como a cor do sol, mas embaçada, preenchida por uma nuvem espessa, uma neblina cerrada ao sol. Achou estranho, mas foi tomado por uma imensa felicidade. Alguém havia lembrado dele e o tiraria dali, daquele mundo. Ficou feliz porque, estava certo, finalmente chegara a hora de morrer e sair daquela merda toda em que chafurdava há tantos anos. Só não dizia que era desde o dia em que nasceu porque, de fato, não se lembrava como tinha sido sua vida nos primeiros dois ou três anos. Se imaginou sempre já tendo nascido com três ou quatro anos.

Sentiu cheiro de sangue limpo, impregnando as tábuas de pinho enegrecidas pelo tempo. Imaginou que sua avó a a tia haviam escapado por aquela passagem secreta e poderiam estar esperando bem ali, mas a voz que ouviu não era delas, nem de ninguém conhecido. Uma voz que ordenava, com carinho: “entra, João, que a casa agora também é tua” e você aqui é muito bem-vindo.

Antes que pudesse se levantar, acordou na cama dura, o sol do sábado já alto se infiltrando peloas brechas da cortina. Desesperado, pensou: não é possível que eu tenha voltado pra essa merda! Agora que me mostraram que havia uma saída! Por que não me deixaram entrar?

Entre sonho e realidade, inseguro do que era verdade ou imaginação, navegou fundo novamente em busca daquela porta que havia sido aberta no paredão de seu recanto secreto. Tentou dormir para, quem sabe, se convencer que aquilo realmente existia. Dormiu, mas o que viu e sentiu não foi mais o ambiente luminoso, mas a velha e tola vida de volta.
Acordou, viveu o sábado, o domingo, o peito cada vez mais apertado, cada vez mais triste, a cada minuto mais desanimado e irritado, sentindo uma dor profunda em todo o corpo, como se uma agulha tivesse espetado sua alma subitamente transformada em matéria viva. Suas pálpebras pesavam cada vez mais, os olhos doíam segurando lágrimas que já haviam secado há muitos anos, as mãos tremiam. A única coisa que sentia era uma imensa vontade de torturar e matar aqueles que, no momento, consubstanciavam e representavam toda a opressão que sentia e cuja origem desconhecia, já que não encontrava respaldo em nenhum fato concreto e relevante.Tinha vontade de acabar com tudo, matar, matar. Mas não tinha nenhuma arma. E se sabia covarde para isso.

João era teimoso, sabia que precisava fazer algo, que quando sentia vontade de matar precisava agir antes que fizesse algo para, de fato, satisfazer sua vontade. Mas João era teimoso e não tinha armas. E era covarde, cagão, bundão. Continuou com a agulha enfiada na alma cada vez mais pobre e desanimada.
E passou a sentir prazer com a dor, e a carregá-la como gozo permanente. Finalmente, por algum caminho torto de sua mente pobre, tinha encontrado a felicidade. O que achava fosse isso. Não era.

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Desfocado

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Desfoca uma imagem banal e poderás ter um arremedo de arte.
Desfoca teus pensamentos e serás…
para muitos, desprezível louco;
para poucos, um novo homem;
para ti, um ser solitário, no limiar do medo profundo.

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Finados, dia dos vivos…

Hoje em dia, não vejo mais muito sentido em se comemorar, ou rememorar, o dia dos finados. Mas respeito o dia e o sentimento de todos. Eu próprio, como esclareço ao final, sempre gostei da data. Desta e de todas as oportunidades que tinha para ir ao cemitério.
E porque passei a não dar tanta importância ao dia dos finados? Antes de mais nada, porque para mim todos os dias passaram a ser dia de finados. Não passa um dia em que eu não me lembre de um daqueles que me foram importantes, caros. E, também, porque, 1) se eles continuam em outro lugar, outro plano, não são finados, mas vivos, como eu, como você! 2) Se tudo se acabar com suas cinzas, terão ficado apenas em nossos corações, nossas lembranças, enquanto nós ainda existirmos. Eu acredito na primeira hipótese, mas reconheço que é uma crença de que necessito para viver.

Mas, vá lá, é uma data, como Natal e tantas outras, e não dá pra fugir do coletivo. Lembrei da data hoje, ao ver um senhor pagando vasos e vasos de crisântemos e margaridas … Aí, meio guiado por mãos invisíveis, vim buscar alguma coisa que me levasse novamente a ouvir as Matinas do José Maurício. Música destinada aos finados, mas para mim sempre um celebração do espírito vivo, de quem está vivo, bem vivo. Já ouvi muito, e nunca associei a música aos… finados.

Mas, ok, vamos respeitá-los. Longe de mim esquecer os que amei, amo, e já se foram. Eu também tenho cá os meus finados. E não são poucos. Amigos, parentes, colegas, amores, paixões que nunca nem mesmo me souberam… Lembro deles, de cada um, de cada uma, com muita saudade, com vontade de que o tempo pudesse voltar e eu novamente estar com muitos deles, para que pudesse, essencialmente, ser diferente com eles, diferente do que fui, melhor e mais agradável do que consegui ser então. Que eu pudesse compreendê-los melhor do que compreendi enquanto estavam cá comigo. Que eu pudesse aceitá-los mais em suas dificuldades, reconhecê-los melhor em suas grandezas, todas elas, agora, apenas cinzas na minha memória…

Entristece? Sim. Mas também alegra. Por saber que, apesar de tudo, eu ainda os amo! Amarei sempre! Porque, finados ou não, eles fazem parte de mim. Pelo menos enquanto eu próprio não for, também, mais um… finado!

Bom feriado a todos nós, vivos e finados!

P.S. Em homenagem ao primeiro e ilustre comentárista, voltei pra registrar. Eu sempre gostei, gosto e vou a cemitérios. É um dos poucos lugares onde, geralmente, ainda de pode ter algum sossego pra pensar na vida, minha e de todos os que comigo viveram, refletir. Desde criança, sempre gostei.

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Palavras serão, ainda, sempre necessárias?

Essa pergunta me ocorre quando começo a divagar pela Internet. Hoje as imagens ganham um lugar que, outrora, só a palavra escrita podia ocupar.

Assim é com a palavra amor, desgastada para muitos, ainda sonhada para outros tantos, incompreendida pela maioria, inaceitável para não poucos, perfeita para quem acredita em perfeição, imperfeita para quem é realista, piegas para os descrentes, verdadeira para os crentes, tola para os que se julgam espertos, dolorida para os feridos, gostosa para os inocentes, tesuda para os fogosos, dispensável para os pragmáticos, inexistente para os psicopatas, eterno e incondicional para quem, além de usar o substantivo, aprendeu também a conjugar o verbo…

Na falta de assunto, na ausência de palavras, deixo aqui dois arquivos. Um curta e o trailler de um longa. Amor é a palavra que se aplica a ambos. Cada um deles poderá ser piegas, inacreditável, surreal, verdadeiro, desejável, incrível…

Escolha seu próprio adjetivo.
As palavras continuarão sendo necessárias… Se não para entender o mundo, pelo prazer que nos trazem na fruição do mesmo mundo, do nosso mundo!

Aliás, só agora me dei conta do jogo que as palavras fizeram: Durán e Dolan!!!

O curta, Sígueme, de Alejandro Durán:

O trailler, do longa Laurence Anyways, de X. Dolan.

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